Wang Huning, o ideólogo do Dragão

Conselheiro político de três governantes chineses, ele é o principal elaborador de estratégias de longo prazo do Partido Comunista da China. Conheça a trajetória do intelectual que fez convergir Marx e Confúcio em busca de estabilidade perene

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Em março deste ano, Wang Huning (王滬寧) foi eleito presidente do 14º Comitê Nacional da Conferência Consultiva Política do Povo Chinês (CCPPC), o principal órgão consultivo político do país. Huning é amplamente considerado o intelectual mais poderoso da China. 

Wang nasceu em 1955 na província de Shandong, no leste da China, a mesma província que Confúcio. Em 1978, após o lançamento das reformas de Deng Xiaoping, Huning foi um dos primeiros a aproveitar o renascimento da universidade da China pelo sistema de admissão (Gaokao). Seu desempenho foi tão impressionante que ele foi aceito diretamente no programa de mestrado em política internacional na Fudan University em Xangai. Seu orientador era Chen Qiren, uma autoridade nas obras de Marx. 

Sua dissertação “De Bodin à Maritain: teorias de soberania pela burguesia ocidental” não está disponível para o público, mas seu primeiro livro Estado/Soberania Nacional (Guojia Zhuquan) trata da importância da soberania como um conceito-chave na ciência política traçando a origem e evolução do conceito no pensamento ocidental, contrastando-o com o conceito chinês de zhuquan, que antecedeu o conceito ocidental. O livro rastreia a gênese e a formação da soberania em diferentes épocas, explicando seu duplo aspecto na supremacia doméstica e na independência externa. Adotando uma perspectiva marxista, o livro elabora a natureza classista da soberania, pois o poder supremo é exercido pela classe dominante de cada sociedade. A maior parte do livro é dedicada a explicar os aspectos internos e externos da autoridade por meio de uma revisão detalhada da literatura teórica sobre o tema, avaliando autores clássicos como Sócrates, Agostinho, Maquiavel, Bodin, Hegel e Austin, até o significado da soberania para questões mais contemporâneas, incluindo a independência nacional, o Terceiro Mundo, a ordem internacional, citando Marx, Engels e Lênin, destacando a importância da soberania nacional para salvaguardar a paz internacional. 

Dois meses após a publicação da versão da tese, Huning lança seu livro reconhecido como o mais importante, intitulado Análise Política Comparada, no qual adota uma perspectiva histórico-sócio-cultural para analisar as estruturas e padrões da política contemporânea por meio de uma revisão histórica das vicissitudes da humanidade desde os tempos antigos até os modernos do mundo atual. Ele traça a evolução histórica da política de tempos antigos até o presente, considerando as condições históricas, social e cultural de cada época como instrumental no desenvolvimento da comunidade política e sistema político (ou o Estado). Citando Marx e Lênin sobre a transição da sociedade socialista para o comunismo, em que tanto a política quanto o Estado no sentido atual serão eliminados, Huning aponta que, embora a visão sem Estado seja uma possibilidade distante, não é totalmente sem sentido, porque fornece uma perspectiva histórica de longo prazo para a comparação e a análise, em certas circunstâncias. Daí a necessidade de acertar a política, a fim de evitar catástrofes como a Revolução Cultural, quando se permitiu que a luta de classes corresse desenfreada. 

Em 1984, Huning ingressou no Partido Comunista. Como reitor de política internacional na Universidade de Fudan, treinou seus alunos na oratória britânica e ganhou o primeiro prêmio com eles duas vezes no Asian Universities Debating Competition em Cingapura em 1988 e 1993. Antes de 1995, escreveu mais de uma dúzia de livros e dezenas de artigos que fizeram sucesso. 

Um de seus livros mais conhecidos é América contra América, fruto de uma viagem de seis meses em viagem por dezenas de cidades pelos Estados Unidos em 1988 como professor visitante, quando ficou desiludido com o fato de o país estar se despedaçando. Como escreveu: “Embora os americanos percebam que enfrentam problemas sociais e culturais intrincados, eles os consideram questões científicas e tecnológicas a serem resolvidas separadamente. Isso não os leva a lugar nenhum; seus problemas estão inextricavelmente interligados e têm a mesma causa raiz; um individualismo radical e niilista no coração do liberalismo americano moderno”. Wang argumenta que a China precisa resistir à influência liberal global e ser culturalmente unificada, autoconfiante e liderada por um partido-Estado forte e centralizado. Ele reflete o desejo de misturar o marxismo com o confucionismo tradicional para sintetizar uma base para a estabilidade de longo prazo.

Em 1993, Huning publicou um artigo sobre “Cultura como poder nacional: poder brando cultural”, argumentando que a cultura era a chave para fomentar a coesão doméstica ao mesmo tempo que aumenta o apelo e a atração do Estado no exterior. Se trata de manter a influência do partido no contexto da “globalização ocidental”. Huning defende que são os fatores culturais de uma sociedade que criam sua política. Não é sua organização econômica, mas o que ele chama de “software social” – valores, sentimentos, psicologia e atitudes. São eles que moldam o futuro político de uma sociedade. Huning aponta que a cultura política da China é diferente do Ocidente. Sua preocupação era desenvolver uma “tecnologia política” que se adapte às condições nacionais da China, promovendo uma cultura política unificada e reagindo a vulnerabilidade à hegemonia cultural ocidental importada através do comércio exterior e outras formas de soft power internacional.

Para Huning, a democracia só pode ser totalmente realizada estabelecendo um sistema político estável sob o controle do partido comunista. A única forma de garantir o desenvolvimento da China é com um governo central forte. No livro Vida Política, Huning aponta que o governo central deve passar de gerir a econômica do micro para o macro e que, para o governo “manter a economia de mercado ordenada”, é preciso manter o monopólio do partido na política assim como manter as tradições sociais da China, com uma atitude vigilante em relação a movimento culturais estrangeiros por seu potencial de destruir a base social e o controle do partido sobre a China.   

Huning começou com política francesa, indo para economia e história ocidental, depois para ciência política, se preocupando especialmente com a legitimidade necessária para as iniciativas econômicas que estavam em marcha com Deng Xiaoping. Em 1995, os líderes da China o levaram para Pequim para se juntar à equipe de pesquisa política. Em 2002, Huning se tornou membro do Comitê Central e diretor do Centro de Pesquisa Política, equivalente a ministro. Em 2007, se tornou membro do Secretariado do partido, num processo de crescente influência. Em 2012, Huning entrou no Politburo. Passou de um dos 204 membros do Comitê Central, para os 25 do Politburo. 

Extremamente discreto, serviu diretamente ao Comitê Central do Partido Comunista Chinês sob três líderes sucessivos: Jiang Zemin, Hu Jintao e Xi Jinping, se tornando um dos maiores estrategistas da China, atando como conselheiro-chefe de três presidentes desde 1995, preparando teorias a serviço de três governantes. Além de ideólogo do partido, faz parte de várias comissões que dirigem a formulação de política em assuntos como finanças, cibernética, construção do partido, relações entre militares e civis. Ao exercer influência significativa sobre a política e a tomada de decisões sobre os três líderes supremos, um feito raro na política chinesa, ganhou comparações com figuras famosas da história chinesa como Zhuge Liang e Han Fei (historiadores chamam este último de “Maquiavel da China”), que também serviram atrás do trono como poderosos conselheiros estratégicos – uma posição referida na literatura chinesa como dishi: “Professor do Imperador”. 

Observadores externos do sistema político chinês frequentemente subestimam a importância da ideologia na política do Partido Comunista da China. O grande experimento chinês e sua projeção ideológica global em andamento tem no pensamento de Huning uma abordagem diferente da vigente no Ocidente. Já passou da hora de começar a levar a sério o pensamento estratégico das lideranças chinesas, conhecer suas formulações político-ideológicas e o que eles pressagiam para o futuro.

Referências

Patapan, Haig, and Yi Wang, 2018. The hidden ruler: Wang Huning and the making of contemporary China. Journal of Contemporary China, 27(109), Pp.47-60.

Wang Huning. 1986. Wang Huning: Reflection on “Cultural Revolution” and Reform of Political System. May 8. http://www.reformdata.org/1986/0508/5887.sh tml. 

Wang Huning, 1988 “The Changing Political and Cultural Structure of China,” Fudan Journal (Social Science Edition), 3, Pp. 55-64

Wang Huning. 1991. America against America (美国反对美国). Shanghai: Shanghai Literature and Art Publishing House

Wang Huning, 1993, “Zhengzhi pian” (“On China’s political development”), in Fudan fazhan yanjiuyuan (Fudan Development Institute), Zhongguo fazhan baogao (China Development Report: 1993) (Shanghai: Fudan Development Institute, 1993), Pp. 68-70 

Wang, Huning. 1993. “Culture as National Soft Power: Soft Power.” Journal of Fudan University. March.

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3 comentários para "Wang Huning, o ideólogo do Dragão"

  1. Muito bom artigo. Viva a democracia.

  2. Augusto Carlos Alves Santos disse:

    Muito bom artigo.

  3. Marcos Madeira disse:

    Sem comentários

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